sábado, 24 de janeiro de 2015

A "CRISE"



Esta é uma história real,
que sucedeu comigo.
A “CRISE”
(de juízo)


Por imposição relativa, para evitar que a força da gravidade pudesse vir a derribar uma parede construída em granito bruto, empilhado na ausência de cimento há mais de trezentos anos, tive necessidade de contactar com artistas que se diziam acertados na matéria, a fim de reforçar a “fóssil”, porém venerável estrutura de uma casa transmontana, minha pertença.
Traçada a estratégia e firmada a convenção dos trabalhos a efectuar e o seu custo, eles (dois) lá apareceram às oito da manhã do dia combinado, munidos de duas marretas mal encavadas, dois cinzéis, já rombos pelo uso e pelo desleixo, uma fita métrica cujo aspecto denunciava grande débito ao brio e à estimação, cheia de borbulhas de cimento, uma colher de pedreiro e o toco de um cigarro cativo ao canto de uns beiços desidratados e amarelecidos pela nicotina.
Ao ver todo aquele aparato de “engenharia” com que se faziam acompanhar, pensei logo, temos gente! Fraquinha, mas temos gente! Vamos lá a ver o que isto vai dar – maquinei logo numa caldeirada de pensamentos entre a apreensão e a incerteza.
Bem, entre marretadas e cinzeladas, por azar sem nenhuma acertar nos dedos, lá deram início à labuta com tão aguerrida vontade, que me deixaram atónito. Afinal estes flinstones quer-me parecer que são mesmo bons no pica-pedra.
Pensei ter constatado que realmente a crise tinha batido à porta daqueles fulanos, ao ver o modo acelerado como trabalhavam e o que arrazoavam, justificando tudo com argumentos e actos, para que a sua jorna não fosse carpida, e certamente para que a faina nunca lhes faltasse - não fosse eu veicular uma má propaganda na aldeia, que em poucas horas se espalharia pelos arredores.
É a crise - pensei eu - face às evidências aterradoras que incansavelmente e sem pejo fulminam o pachorrento povo português.
Todos os dias, durante três dias consecutivos, a partir das oito horas da manhã começava a peleja castigadora e vingativa contra as paredes de granito, que se prolongava até às cinco da tarde, com uma hora de intervalo para o almoço, como regula a lei, e dez minutos alargados para uma cerveja a acompanhar a bucha da tarde;  é que os nossos trabalhadores não passam sem a cervejita ou vinhito no trabalho – água corrói as osteo-articulações e não “enseba” a mente.
Segunda, terça, quarta… Quinta-feira não apareceram os trabalhadores que eu acreditava estarem afectados pela crise, em face da acentuada lamúria, que com muito talento e “competência” vinham transmitindo.
Realmente e com algum espanto, vim a saber que estavam afectados por uma crise que, visionada de outro aspecto não foi mais do que uma crise de cachimónia, que eles não conseguiam debelar; era dia de caça! Foi por isso um dos dias da semana em que eles religiosamente trocavam o trabalho por uma passeata entre carqueja, touregas e carrascos, levando embutida na mente uma chumbada certeira no casaco felpudo de algum coelho mais distraído ou assolado por forte caganeira, que pela frente lhes passasse.
No dia seguinte ao saber que o acontecimento, apenas tinha sido decidido entre ambos sem qualquer aviso prévio com a entidade patronal que lhes proporcionava trabalho durante o ano, fiquei boquiaberto e comentei para comigo:
- Então é esta a crise de que tanto gemem?
Afinal estes não tinham uma crise de trabalho, nem uma crise financeira, mas sim, uma crise de juízo. E como estes há muitos.
Final da história:
 O patrão não aprovou e passados uns dias entraram mesmo em crise – talvez temporária, porque há sempre gente de boa-fé que vai caindo no engôdo.

António Figueiredo e Silva
 Coimbra, 23/01/2015   

www.antoniofigueiredo.pt.vu   

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