terça-feira, 17 de março de 2015

O HABEIS COPUS



 O HABEIS COPUS
(Fantasia)

A noite era fria. Uma brisa ligeira talhava o ar e “lambia” com suavidade falsa como as lâminas de barbear, a pele do corpo que o beberrão deixava ao léu, encharcado por grossa carraspana. Era dia não sei de quê para aquele desgraçado, que há muitos anos o vício dominara. Todos os dias – dizia – eram dias não sei de quê, que ele gostava de festejar, para se esquecer também não sei o quê, pois nem ele próprio sabia. Com penoso sacrifício, contudo com o espírito a transbordar de inocente e etilizada alegria - também não sei de quê – lá ia cambaleando agarrado às paredes, com medo que que elas lhe caíssem em cima, ou com intensificado mêdo que o chão lhe fugisse de debaixo dos pés, ao mesmo tempo que balbuciava umas guaisguer goisas zem dom dem zom, cuja fonética ficava muito além da nossa normal compreensão.
Como ainda era portador de uns euros no fundo dos bolsos - um restito da sua parca reforma – e não era cego nem surdo, tinha os sectores timpânicos um pouco desafinados com a pinga, mas os olhos vivos como vidro e com bom alcance; esgazeado e cambaleante, perscrutava com a calma pachorrenta de um ébrio de boa catadura, o próximo ramo de loureiro que à luz pálida dos candeeiros da ruela lhe luzisse; procurava a tasca do Salvador Torcato Junqueiro, mais conhecido por STJ, onde quase sempre recorria ao último copito no fim da costumeira via-sacra diária. Mas hoje foi demais!
De vez em quando, zizagueava de um lado para o outro da estreita viela, como um barco maluco a navegar no mar revolto; do chão pedregoso de antiga calçada portuguesa, fartamente atapetado de beatas e escarraduras, sobressaia um acidulado cheiro a mijo, que o hábito, na sua lenta mas persistente teimosia, há muito tempo lhe havia suprimido das narinas.
Anda mais uns metros e percebe-se de um cacofónico burburinho; ao aproximar-se ouve umas palavras quaisquer vindas de alguém conhecido, que fazia parte do monte da velha-guarda, que lhe soaram como Habeis Copus.
Olhou para o lado e para cima e lá estava um bocado desfocado – a borracheira não dava p´ra mais - o ramo de loureiro com as folhas já um pouco desbotadas que, num convidativo aceno pecador o aliciava a mais um púcaro, para acabar de atestar o bandulho até ao gargalo. Era a taberna do STJ que este explora mai’la mulher.
Um pouco desequilibrado encostou-se às portas e, vencendo a teimosia da força das molas, entrou de rompante e agarrou-se à primeira mesa em que tropeçou, para não cair.
Com calma santa e voz arrastada, apenas pergunta ao casal que toma conta da chafarica.
 Habeis Copus? – Ouvem-se risadas de chacota.
Não! – Responde o STJ com voz dura, ao ver o estado deprimente daquele desgraçado, outrora bem fincado na vida.
Agora não há pão p’ra malucos. Bai p’ra casa e num seijas casmurro.
Desalentado com a resposta de STJ e sem nada retorquir, já muito encharcado pela zurrapa que havia ingerido, deu meia volta, virou costas e, cobreante, rumou para o seu pardieiro “edificado” ao fundo do quelho, procurar curar a de hoje, para recomeçar a de amanhã.
Lá o esperava uma “velha” enxerga para dar descanso ao corpo e ao espírito já muito causticados pela crise que ele próprio arranjou e que agora tentava afogar na buída.  
Sabia que não iria dormir descansado por causa das companhias e dos pensamentos que lhe moíam a mioleira! Lá era também, o domicílio de umas dezenas ou talvez centenas de pulgas, sedentas de sangue quente e ansiosas por lhe picarem as artérias bem avinhadas das panturrilhas.
È uma pena! Mas ao que constava foi ele é que traçou o seu acidentado trilho.
Por causa desta cena, os amigos até o baptizaram de “ O HABEIS COPUS”.

António Figueiredo e Silva
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