terça-feira, 10 de outubro de 2017

"UMA ENXURRADA DE SORTE"

“UMA ENXURRADA DE SORTE”
(Realidades de Vila Verde)

Nos invernos frios e chuvosos, quando os *cavaleiros apareciam a roçar o cume frio da serra da Padrela, já todos adivinhavam que viria com toda a certeza uma zerbada (chuvada forte) agressiva e implacável.
Quando a adivinhação se transvertia em realidade, era o fim do mundo! Uns arrebunhavam (arranhavam) a piolheira, tementes ao Divino, e outros metiam-se por abaixo da cama “borrados de mêdo” para não serem atingidos por algum um raio desvairado.
 Apareciam de repente aquelas correntezas de pedras, lama e outros detritos, vindas das encostas da serra por ali abaixo, enquanto fortes estrelincos (relâmpagos) atemorizavam o povo que, suportado pela sua fé, rogava a “Santa Bárbara Bendita”… que naquele instante de aflição os livrasse das toeiras (estampidos, trovoadas).
Eram momentos terríveis quando a Natureza ralhava com toda a sua fúria, porque as pessoas só “cometiam pecados” e esta era uma das formas que Deus encontrava para as meter na linha dura do credo.
Estes “castigos” aquosos e lamacentos vindos de Pêto de Lagarelhos, Escariz, Seixo e Loivos, juntavam-se num terrível caudal que ia engrossando à medida que descia pela encosta abaixo e descarregava a sua fúria nas olgas que compreendem as margens da ribeira de Oura, que actualmente não passa de uma pequena lágrima dessas colossais e apavorantes torrentes; em tempos passados, o seu caudal chegava a ser tão grande que alagava todos aqueles campos que marginavam a ribeira e que se estendiam desde Loivos a Vidago, passando nas zonas da Salgadela, Ribeira e Poileira em Vila Verde; segundo relatos antigos algumas vezes as águas chegavam ao caminho entre Vila Verde e Oura, tornando-o dificilmente transitável.
Naquele tempo era grande o misticismo que habitava nas cabeças das pessoas e não conseguiam compreender os fenómenos naturais inerentes às circunstâncias climáticas atinentes à reposição do estado da harmonia da matéria.
Aconteceu num dia trevoso desses, quando, enxurradas medonhas e repentinas, começaram a inundar e a arrastar tudo o que se lhes deparava pela frente, que um moleiro, estava a tratar da moagem do grão num moinho, ali para os lados da Salgadela, ao aperceber-se do perigo iminente de ser arrastado e correr o risco de morrer afogado, trepou por um amieiro e por lá ficou, ao que chegou até mim, durante muitas horas, até que a inundação amainasse. Devia ter sido um susto!? Mas Deus não só “castiga”; quando lhe dá na veneta também põe a mão por baixo – como foi o caso.
Este acontecimento foi notícia jornalística na altura e até deu direito a entrevista.
Isto aconteceu com um Sr. conhecido ali na terra por Manel Miúdo (por ser de baixa estatura), que veio a ser no afinal, o pai do Sr., António Ferreira, mais carinhosamente conhecido por Ti António Moleiro, e que, apesar da sua provecta idade, ainda está vivo e risonho como sempre foi seu apanágio - que viva muitos mais anos é meu desejo.
Pessoa de boa índole, por quem tenho bastante consideração e mantenho prezada amizade.
Quando por vezes passava por lá buscar alguma farinha de milho para fazer papas, de que tanto gosto, servia-me sempre daquilo que em Vila Verde chamam de “o beijinho da farinha”.
Não me esqueço!

António Figueiredo e Silva.
Coimbra, 08/10/2017
www.antoniofsilva.blogspot.com.


  *Amontoados de nuvens baixas, na gíria da terra.

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